sexta-feira, 2 de março de 2018

OPINIÃO: Apascentar ovelhas em 2018

MIGUEL ROMÃO in publico.pt
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
28 de Fevereiro de 2018, 9:26

Como se passa de um território com dois pólos de concentração de oferta de serviços, emprego, habitação e pessoas (Grande Lisboa e Grande Porto) para um território multipolar? 
O amor agora urbi et orbi apregoado pela descentralização e pela renovação do "interior" anda de mão dada – presume-se que, sorriso matreiro em riste, por aldeias e campos despovoados – com a previsível incapacidade de se assumirem decisões difíceis, mas necessárias, se porventura se quiser construir um país diferente. Porque é disso que estaremos a falar, se nos quisermos levar a sério nesta matéria.  PUB  Pode obviamente questionar-se se é isso absolutamente necessário e mesmo urgente. Mas não há como evitar uma ideia de um país diferente. E só há diferenças quando se está disponível para mudar...  Mudar em quê? Como se passa de um território com dois pólos de concentração de oferta de serviços, emprego, habitação e pessoas (Grande Lisboa e Grande Porto)  para um território multipolar, presumindo que não se sonha ingenuamente com dez milhões de pessoas a viver sorridentes em aldeias como a da Heidi e ganhando provavelmente a vida a especular em BitCoins enquanto apascentam as suas duas ovelhas nas horas vagas e colhem flores?  Duas ou três coisas podem ser feitas. Desde logo o óbvio. Ninguém se mantém ou se muda para longe da faixa litoral urbanizada e industrializada se não tiver acesso a um emprego. Portanto, há que estimular a instalação de empregadores reais (e não sedes virtuais de empresas) em territórios viáveis mas até agora pouco atractivos. Como se atraem e deslocalizam empresas? Bem, da mesma forma que isso é feito há séculos: com dinheiro, deduções, incentivos; energia a preços competitivos; um match entre localização e actividade económica em concreto; e vias de comunicação e meios de transporte adequados.  Depois, é preciso garantir que essas empresas têm efectivamente trabalhadores e portanto, pelo menos num período de tempo inicial, terá de se estabelecer um regime específico para quem aceite manter-se ou mover-se para esse território, que inclua uma ponderação favorável entre salário disponível e tributação, habitação, educação, acesso à saúde, etc., ou seja, tudo aquilo que normalmente faz alguém mudar de vida. Habitação, saúde e educação de qualidade são elementos estruturais para a atractividade de “novas” populações e, pensando nas duas últimas, hoje a tecnologia pode fazer maravilhas num e noutro caso, se assim se quiser.  Para além de termos de assumir toda uma nova atitude em relação aos imigrantes. Fazem falta, devem vir, temos de os trazer activamente e não com a atitude cínica, meio caritativa meio oportunista, que tão bem sabemos assumir.  Afinal, não deverão ser nem deverão ser vistos como heróis aqueles que mudem de Lisboa para Trancoso: queremos que mudem para Trancoso como o poderiam fazer para Londres ou para San Diego. Porque faz sentido e é compensador. Em sentido amplo. Ou só queremos captar para Trancoso personagens new age a quem o dinheiro repugna e que insistirão em meditar 24h/7? E todos os demais estarão condenados a comutar diariamente entre Loures e Lisboa até ao fim dos seus dias?  Mas o nosso Estado, como é um grande empregador, pode também fazer directamente a sua parte. E pode sim começar a pensar em negociar transferências de serviços e de instituições para fora de Lisboa. Levando consigo mão-de-obra qualificada e novas famílias. Quando isso faça sentido. De forma programada. E tornando desde logo a circulação no nosso país efectivamente democrática. Quem pode pagar a generalidade dos preços das nossas portagens e dos nossos combustíveis de modo consecutivo? Ou os preços dos bilhetes de comboio, sem grandes garantias, para mais, de uma especial rapidez? Viver fora de Lisboa ou da faixa litoral não pode ser uma condenação a degredo ou a entrada num couto de homiziados moderno... Circular de forma acessível num território é cada vez mais um novo direito fundamental.  Em França ou em Espanha existem milhares e milhares de quadros que circulam centenas de quilómetros por semana, maioritariamente de comboio, porque as viagens são rápidas, proporcionalmente mais baratas e garantem um padrão elevado de qualidade de vida, permitindo desde logo que se habite fora dos centros urbanos e se venha, apenas alguns dias por semana por exemplo, à urbe.  Em suma: qualquer mudança que seja real e não simplesmente apregoada vai custar dinheiro, não há como dizer de outro modo. Mas o pior que poderia acontecer era daqui por uma década ou duas olharmos para o País, termos entretanto criado estruturas de decisão política adicionais ao nível local, termos remetido competências adicionais para autarquias, novas ou existentes, tornando ainda mais desiguais os serviços públicos, mas estruturalmente termos ainda o mesmo Portugal velho, sem pessoas, sem economia, sem energia e com poucas qualificações, com empregos apenas nas autarquias e numa ou noutra empresa resistente ou numa hotelaria sazonal. Mantermos aquilo portanto a que se convencionou designar “interior”, apesar de estarmos a falar por vezes de zonas próximas de centros urbanos espanhóis ou a apenas 60 minutos de Lisboa ou do Porto...  Foram-se perdendo também sequencialmente grandes oportunidades para ajudar a criar centros que funcionassem como alternativas parciais a Lisboa e Porto, desqualificando a atractividade de diversos territórios. Nos anos 90, por exemplo, falando de uma realidade que conheço bem, criaram-se duas novas faculdades de Direito públicas em Portugal, uma verdadeira revolução nesta área. Onde? Em Lisboa (que já tinha uma, com um numerus clausus superior ao de todas as demais no País) e no Porto! Não foi por exemplo nas Universidades de Évora ou do Algarve, o que leva a que ainda hoje abaixo de Lisboa não exista oferta de formação superior ao nível do Direito.

https://www.publico.pt/2018/02/28/opiniao/opiniao/apascentar-ovelhas-em-2018-1804692


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